às vezes, leio
Há anos mantenho de maneira mais ou menos comprometida uma planilha simples com as minhas leituras de ficção de cada ano. Esse costume começou em 2015 (meu deus, dez anos atrás!!), numa época em que eu tinha muito mais tempo pra ler e que justamente por isso deve ter sido o auge do meu hábito de leitura. Em alguns anos simplesmente não registrei nada, em parte como um impacto da pandemia: eu lia muito no transporte público; meu último ano da faculdade foi remoto, em 2020, e desde que me formei tenho trabalhado de casa, de modos que meu principal contexto pra ler se foi. Tem sido um desafio refazer esse hábito desde então.
Sempre acho interessante observar como foram as minhas leituras ao longo dos doze meses que se passaram. Fiz isso em posts de blogs que talvez não existam mais (acho que em uns dois anos fiz posts no Medium) e em fios de redes sociais que definitivamente não existem mais (por culpa do Kiko do Foguete). Acho que aqui pode ser uma casinha melhor pra esse tipo de texto, então pensei em fazer assim: primeiro, algumas estatísticas gerais sobre as minhas leituras e, depois, comentários sobre os livros em si. Vamo nessa? Já aviso que ficou um post meio longo hein.
Algumas estatísticas gerais 📊
Em 2024 li um total de 12 livros, um número que me surpreendeu, em função do que falei ali sobre o contexto pra ler e tal.
Desses doze, 66,67% (7 livros) foram escritos por brasileiros e 33,37% (4 livros) por autores estrangeiros. Gosto dessa proporção. Não gosto muito do fato de que todos os gringos foram estadunidenses, algo pra ficar atento no ano que vem.
A mesma divisão aparece para autores homens (66,67%, 7 livros) e mulheres (33,37%, 4 livros). Não gosto dessa proporção. Também não gosto do fato de que todos os doze livros foram escritos por pessoas cis. Já tive anos em que ler autores mais diversos foi uma meta intencional, gerando ótimas leituras. É meio triste perceber que, se essa não for uma meta intencional, é muito fácil ler mais homens do que mulheres, e muito mais pessoas cis do que trans. Pelo menos várias das histórias que eu li envolveram personagens LGBTQIA+ e/ou não-brancos. Já é alguma coisa.
Esse ano o ebook foi disparado o formato que eu mais li, com 10 livros (83,33%) contra só 2 físicos (16,67%). Herança da pandemia também. Pegar metrô todos os dias colocava a excelente Biblioteca de São Paulo no meu caminho, o que facilitava muito ler livros físicos (afinal, eram de graça!). Hoje isso acaba sendo muito mais trabalhoso pra mim, embora queira voltar a usar desse recurso porque AMO o conceito de uma biblioteca pública (um lugar cheio de livros de graça, pelo amor de deus!!!).
Feitas as estatísticas, vamos para os detalhes das leituras em si. Ah, importante: meus comentários podem conter spoilers, ok? Tentei não extrapolar demais a sinopse, mas pode ser que acabe contando algo a mais. Tá avisado 😉
Em vez de ranquear os livros, decidi selecionar quatro categorias: "Bons livros", "Favoritos do ano", "Não funcionaram pra mim" e "Ódio do ano". Começando pelas coisas boas:
Bons livros ✨✨
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- Mais ou menos 9 horas, Vitor Martins
O mais novo livro do Vitor é também o mais maduro que ele já escreveu. Achei uma delícia. Tem o bom humor característico dos livros dele, mas bem dosado pra contar uma história sobre um rapaz gay cujo pai acabou de falecer na véspera do seu aniversário de 30 anos (aniversário do rapaz, não do pai. Acho que deu pra entender). É um livro sobre relacionamentos e sobre luto, mas não é um luto pelo pai que faleceu, é um luto sobre a vida que eles poderiam ter vivido e que nunca viveram, por conta da homofobia. Dá mesmo a impressão de que o Vitor talvez estivesse lidando com seus próprios demônios ao escrever esse, o que só enriquece mais o livro. - Minha metade silenciosa, Andrew Smith
Esse foi uma grata surpresa. Troquei esse livro usando aquele sistema de trocas do Skoob há muitos anos, de modos que ele acabou juntando poeira na minha estante esse tempo todo. Finalmente peguei pra ler e achei uma escrita muito boa, que me prendeu do começo ao fim. A história é sobre o Palito — um rapaz que tem esse apelido por ser muito magro e muito alto — e seu irmão sobrevivendo às agressões que sofrem de seus pais. É uma história com alguns elementos meio clichês estadunidenses sobre bullying, mas eu curti a forma como ela é contada, um coming of age muito bom. Também tem muita violência aqui, então é bom ter algum cuidado pra ler. - Mais forte que o mar, Kassandra Montag
Esse foi minha última leitura do ano, e confesso que exigiu um pouco de insistência pra me adequar ao ritmo da história; depois, me toquei que pode ser intencional: a história é sobre um mundo que acabou em dilúvio, então acho que o ritmo acaba por representar o próprio movimento do mar. A gente acompanha a Myra e a filha dela, Row, tentando sobreviver nesse mundo horrível. É um livro sobre barbárie. A Myra me irritou um pouco ao longo do livro, com sua teimosia e péssimas decisões (que também são suas melhores qualidades e pilares fundamentais da história em si). Vale a leitura.
Agora, os maiorais:
Favoritos do ano ✨✨
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- A palavra que resta, Stênio Gardel
Muito sensível. Conta a história linda (e triste) do Raimundo, um senhor de 71 anos que guarda consigo uma carta que recebeu do seu namoradinho da adolescência, e que nunca conseguiu ler porque... bom, porque o Raimundo não sabe ler. O livro vai voltando no tempo pra explicar pra gente como foi pro protagonista se entender gay numa realidade profundamente preconceituosa. A amizade do Raimundo com a travesti com quem vive (e cujo nome me fugiu 😮💨) é muito linda também. É muito bonito o Raimundo tentando se explicar pro pai (que não quer entender de jeito nenhum) e depois de desistir, tentando se explicar pra si mesmo, tentando se entender. Um livro pra chorar. - O avesso da pele, Jeferson Tenório
Um livro sobre racismo, meio que contada de trás pra frente. A gente vai conhecendo a história dos pais do Pedro, uma história cheia de sofrimento. Conforme ele vai contando, vai percebendo um monte de erros dos pais. Só que também vai percebendo que eles não tavam ali pra acertar nada mesmo, só tavam tentando viver. A gente vai percebendo tudo isso junto com o Pedro, que tem muita mágoa (do pai, principalmente) mas que, conforme conta a história, vai aceitando e compreendendo tudo isso. É um livro muito, muito bem escrito. Triste também. - Pequena coreografia do adeus, Aline Bei
Esse foi meu primeiro contato com a escrita da Aline, e me deixou com vontade de ler mais. Pequena coreografia é escrito em prosa poética e de fato parece muito com uma coreografia, tem claramente um ritmo de valsa ou de dança muito gostoso de acompanhar. Me pegou muito o quanto a protagonista Julia parece crescer e se desenvolver apesar dos pais. É muito lindo como, já mais pro final do livro, Julia descobre na sua própria escrita uma forma de conversar consigo mesma, de dar sentido pro mundo ao redor dela. Meio triste, mais otimista. - Floresta é o nome do mundo, Ursula K. Le Guin
A única ficção científica do ano foi um livro muito bom. Li esse na época em que o país inteiro ficou coberto em fumaça. Comecei achando que seria um livro sobre algo como ambientalismo/ecologia, encontrei foi um livro sobre antropologia e colonização. Muito bom, curto e com um universo bem bonito. Os alienígenas nativos do planeta a ser colonizado pelos humanos são uma analogia bastante óbvia aos povos indígenas, e o que mais me pegou foi como a autora descreve uma cultura e filosofia riquíssima desse povo, cultura e filosofia que os humanos até poderiam acessar e compreender se quisessem, mas pela qual não têm o menor interesse. Em vez disso, os humanos acabam introduzindo nesse povo antes pacífico a violência e o assassinato, de maneiras talvez irreparáveis.
(Acabei de perceber que tem algumas coisas em comum entre a maioria desses favoritos: os três primeiros são livros brasileiros, com histórias que, de um jeito ou de outro, falam muito sobre o brasil. Não sei bem explicar, mas é, é isso. Os três também são histórias tristes. O da Ursula não é intencionalmente sobre o brasil, mas é sobre o brasil sim.)
Os que não funcionaram pra mim 😐
Eu não odiei esses. Também não achei medianos, tão mais entre "ok" e "meio ruim":
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- Cloro, Alexandre Vidal Porto
A história de um gay no armário, casado com uma mulher e que passa a viver sua homossexualidade já mais "tarde" na vida, em viagens e escapadas. A família acaba descobrindo tudo quando ele tem um infarto e morre em uma sauna gay no Japão. A escrita me pareceu pesada e lenta, apesar da premissa até que interessante. Também achei o narrador meio presunçoso. Você não é o Brás Cubas mona, não tente ser. - Marketing do amor, Renato Ritto
Poxa, esse aqui me deixou triste de verdade, porque é um grande desperdício de potencial. O Renato pegou a história de Brilhante, seu conto delicioso (e pelo que me lembro meio picante, até) sobre um romance clandestino entre o estagiário de uma agência de publicidade e o seu chefe e tentou expandir em um livro maior que... não funciona tão bem. O conto é MUITO melhor. A premissa continua sendo a mesma, mas num livro maior, a coisa toda de ser escrito usando e-mails e mensagens de texto acabou ficando muito cansativa e até forçada em alguns momentos. A minha impressão é de que o Renato sofreu um pouco pra conseguir escrever esse livro (se não me engano, nos agradecimentos ele menciona mesmo algo assim) — foi escrito no meio da pandemia, dá pra entender. É uma pena. Mas indico demais o conto!! - Nunca vi a chuva, Stefano Volp
Esse eu li no app da BibliOn, do governo do estado de São Paulo. A premissa é até interessante, sobre um garoto que descobre que tem um irmão gêmeo cego vivendo em Portugal. Mas me incomodou demais o quanto esse irmão é santificado, um ser de puro perdão e sabedoria em vez de... bom, um adolescente. Não sei, me pareceu um jeito um pouco estranho de tratar um personagem PcD, como um santo mesmo. Também me irritou a forma como o autor não explicou como esses irmãos ficam sabendo da existência um do outro. O protagonista recebe uma ligação misteriosa no começo do livro que nunca é explicada. Totalmente Deus Ex Machina. - O ódio que você semeia, Angie Thomas
Eu gostei desse, na verdade. Só que é um livro profundamente estadunidense, num nível que quase fica difícil de se conectar com a história. As referências da narradora são todas estadunidenses, as gírias, tudo. Inclusive, me pareceu que a tradução intencionalmente manteve algumas coisas, que eu particularmente achei escolhas um pouco questionáveis. Tipo traduzir "boy, bye" pra "garoto, tchau". Mais ou menos como O avesso da pele, também é um livro sobre racismo e violência policial, mas de um jeito bem mais estadunidense mesmo. Talvez teria funcionado melhor aos meus catorze anos.
Agora pra passar raiva:
O ódio do ano 😡
Meu deus, esse aqui eu detestei com todas as minhas forças, juro mesmo. O troféu de pior do ano vai pra:
Corpos secos, Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado
Puts, esse aqui é uma bomba. Nem sei direito por onde começar. A premissa do livro é até interessante: o uso excessivo de agrotóxicos acabou causando o apocalipse zumbi. Ok, bacana. Acontece que a história não faz A MENOR IDEIA de pra onde tá indo, então não vai pra lugar nenhum. Se você quiser muito me convencer de que era o conceito do livro desde o começo (uma história que vagueia por aí sem chegar em lugar nenhum, igual a um zumbi) eu até acreditaria. O que não quer dizer que é um livro bom.
Ai, juro. A minha impressão é de que os autores não conseguiram se reunir direito enquanto escreviam, então meio que cada um foi escrevendo um capítulo e repassando o pepino pro próximo autor, numa grande gincana de Passa ou Repassa do Celso Portiolli. Que raiva. O livro introduz elementos que não usa nunca mais, tipo uma espécie de líder dos zumbis, que não é explicado em momento algum. Mata seus melhores personagens sem dó. Sério, é muito fraco. Odiei de verdade.
Enfim, é isso! Se você leu tudo isso, obrigado pelo imenso valor que aparentemente você dá a minha opinião hahahah. Se quiser interagir, meu perfil no Mastodon tá aqui e meu e-mail aqui. Gosto muito de fazer posts assim. Talvez em 2025 eu faça numa frequência maior, mensal ou algo assim. Me ajudaria a lembrar melhor do que gostei e não gostei em cada livro, além de ficarem textos mais curtos. Me manda sua lista de leituras também! Abraço 💚