Parece terapia, mas é só capitalismo
A leitura do Os Desafios da Terapia, do Irvin Yalom, tem ressoado muitíssimo comigo. Acho que os livros dele são os materiais que mais me influenciaram em termos de filosofia de trabalho e estilo terapêutico. Em "Os Desafios da Terapia", o Yalom vai discutir sobre a relação terapêutica a partir de vários pontos de vista, falando sobre como as sessões podem ser diferentes na perspectiva do terapeuta e do paciente, sobre como cada paciente é um universo muito único e a interação dele com o terapeuta é a ferramenta mais poderosa de qualquer processo de terapia. Acho lindo de jeitos que mal consigo descrever.
Nesse contexto, há algumas semanas ouvi o episódio dO Assunto, do G1, sobre a procura que usuários têm feito por algo como terapia, só que no ChatGPT. Pra além de todos os motivos já consolidados pra odiar essa tecnologia (do imenso gasto energético à mineração de dados do usuário, passando pela exploração de trabalhadores do sul global), essa me pegou num lugar bem específico. Estruturei esses pensamentos num post lá no meu Instagram de psicólogo, mas quis trazer a conversa pra cá também. Eu poderia estruturar num texto de fato, mas levar lá pro Instagram já demandou uma semana do meu tempo kkkkkk então esse post é meio que o outline daquele post, minhas anotações enquanto preparava a ideia que se tornou aquela publicação. Nesse processo, achou que o resultado final ficou até que bem diferente desse outline, motivo pelo qual sugiro que você leia este e o do Instagram, na ordem que preferir.
- Terapia não se faz sozinho - a relação é o principal e mais forte veículo de mudança;
- Um terapeuta robô está disponível a toda hora, em qualquer lugar, quando você quiser. Ele não tem necessidades próprias, vontades nem jeito de falar. Ele não te confronta, não te desagrada. Isso é terapia?
- "Robô" vem da palavra tcheca robota, que significa trabalho forçado ou servidão. A quem interessa um terapeuta robô, escravo e servo?
- A quem interessa esse apoio? Pra quem ele serve? É mais uma solução band-aid pra uma sociedade que, ela própria, adoece. Dicas rápidas pra que você se sinta melhor, mas sem mudar de fato nenhum aspecto da sua vida ou do seu cotidiano. Apenas se adeque;
- Anula o aqui e agora, a interação;
- É terapia sem exposição real, sem relação. Me expor, sem me expor;
- É como escrever em um diário, só que pior. Porque esse diário não tem processo, não tem reflexão. Eu pergunto e o robô responde. Na terapia, quem tem que responder sou eu, não o terapeuta;
- As missões são diferentes. Um terapeuta quer fazer peguntas para que você chegue em uma resposta; um chatbot quer te dar respostas prontas, rápidas. Não tem transformação, tem permanência. Manter as coisas como estão;
- É mais fácil confiar em "alguém" sem rosto, um texto, alguém que não existe;
Parece terapia, mas é só capitalismo
O episódio do podcast O Assunto, do G1, trouxe dados sobre uma crescente procura por Chatbots de Inteligência Artificial para terapia.
É claro que esse é um fenômeno que existe em um contexto que não dá pra ignorar. Muito dessa procura tem a ver, por exemplo, com o custo elevado de um processo terapêutico de verdade, da dificuldade de buscá-lo no SUS ou em outras instituições que o ofereçam sem custo. Isso tudo é sim parte do problema, e uma parte que extrapola a própria psicoterapia: é um problema de um sistema que é incapaz de oferecer renda e trabalho digno que permitam acesso, inclusive, a um processo terapêutico adequado.
Ainda assim, alguns aspectos mais específicos me chamaram a atenção. Num dado momento do episódio, a Natuza pergunta ao ChatGPT: "estou sentindo uma angústia no peito. Terminei com meu namorado e estou sofrendo muito. O que devo fazer?". O robô oferece conselhos, que não são de todo ruins ("busque amigos", "busque um terapeuta"). Em seguida, a Natuza pergunta ao psicólogo convidado como ele reagiria a uma fala como essa no consultório. Em vez de uma resposta, ele oferece uma nova pergunta: "Por quê você acha que essa dor, nesse momento, está sendo tão significativa pra você?". A Natuza conclui, então: "A IA me responde; o analista me pergunta".
Acho que é aí que está o ouro do episódio. A conversa poderia se encaminhar para uma questão ainda maior: o que é terapia? Uma definição de que eu gosto muito é a de que a terapia é um encontro entre dois especialistas: o clínico, que tem expertise profissional, e o paciente, que é um especialista nele mesmo. Qualquer transformação precisa partir desse encontro e de tudo que ele envolve. Compromisso, vulnerabilidade, exposição, coragem. É um processo que dá trabalho, mesmo (principalmente!) pro cliente.
Falar com um chatbot parece ser uma solução mais barata não só porque é gratuita, mas também porque não exige nenhum desses outros custos. Eu não preciso me sentar diante de um outro ser humano e me ouvir, realmente me ouvir. O chatbot está disponível para mim, 24 horas por dia. Não sente fome, não tem família nem mais nada o que fazer além de me... servir ("bot" aliás deriva de robota, que significa trabalho escravo). Será que ele é capaz de discordar de mim? De apresentar um olhar novo, diferente do meu, sobre o que estamos "conversando"?
Tá proibido usar o chat então? Bom, não. Cada um faz o que bem entender. Penso que talvez poderia ser um recurso em alguma medida comparável a usar um diário, desde que o usuário esteja escrevendo mais do que lendo. Afinal, é aí que existe o potencial pra reflexão, pra realmente pensar sobre si mesmo. Não acho que é esse o uso que se tem feito dele, no entanto.
Aqui não tem caixa de comentários (ainda bem), mas se você quiser falar comigo esse é o meu perfil no Mastodon e esse é o meu e-mail 😉